Subjugado por grupos armados à margem da lei e assolado pela maior operação militar urbana da história da Colômbia, o bairro Las Independencias, situado na Comuna 13 da cidade de Medellín, é hoje uma espécie de galeria de grafites a céu aberto, cujo acesso se dá por um sistema de escadas rolantes elétricas – as únicas do mundo implantadas em uma favela.
John Alexander Serna “Chota”, de 28 anos, é ali uma celebridade. Surge de dentro da Graffilandia, a galeria-café construída abaixo de sua casa, entre o terceiro e o quarto lances do sistema, e logo é assediado, frente a seu mural Operación Orión, por um dos guias locais da comunidade, quem, nesta manhã de fevereiro, acompanha um grupo de turistas estrangeiros em um graffitour pelo bairro:
– So, guys, we are very lucky today – anuncia o guia bilíngue. – I present you Chota, the artist of this painting and one of the biggest artists of Comuna 13.
Alguns gringos lhe pedem selfies, ao que ele por alguns instantes se presta com simpatia, não obstante a pressa que tem: outro grupo de turistas já lhe aguarda na Cabeza del Reversadero, a rotatória ao pé do morro, para a realização de uma pintura ao vivo. Chota abre passagem, ingressa no terceiro lance das Escaleras Eléctricas (as escadas rolantes) e dá início à sua descida rumo ao Reversadero.
– Antes, o valor do que eu fazia não se notava – recorda ele. – Já com as escadas rolantes, começamos a ter reconhecimento e incentivo. Elas garantem o acesso ao bairro e permitem que as pessoas daqui exponham seu trabalho ou sua arte aos estrangeiros que nos estão visitando.
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O que primeiro causa impacto em Operación Orión, o referido mural de Chota, é o rosto de uma mulher, do qual escorre uma lágrima e germinam alguns ramos. A seu lado, o que se vê é uma mão que atira um par de dados sobre um aglomerado de casas típicas de um bairro popular. No primeiro dado alcança-se ler “Com. 13”; no segundo, “16. 10. 2002”.
Foi precisamente nesta data, 16 de outubro de 2002, que o então presidente da Colômbia, Álvaro Uribe Vélez (2002-2010), a pedido do então prefeito de Medellín, Luis Pérez Gutiérrez (2000-2003), ordenou a tomada da Comuna 13 pelo Exército Nacional, no que seria a maior operação militar urbana da história do país.
Havia muito tempo que o Estado perdera o monopólio das armas e o controle administrativo sobre esta zona íngreme e periférica, que passou a ser ocupada por assentamentos informais desde finais da década de 1970 e que se encontrava, desde 1990, sob o jugo de milícias urbanas do Exército de Libertação Nacional (ELN) e das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), grupos guerrilheiros aos quais se somariam, em 1996, os Comandos Armados do Povo (CAP).
Nesses tempos, a comunidade convivia com tiroteios e balas perdidas, com assassinatos à queima-roupa e atendados a bomba, com desaparecimentos forçosos, com extorsões e com aliciamento de menores. Toda essa violência se intensificou e conheceu seu ápice a partir do ano 2000, quando o Bloque Cacique Nutibara e outros grupos de paramilitares das Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC) também passaram a disputar o controle do território, detonando ali um fogo cruzado sem precedentes.
A Operação Orión, ocorrida entre os dias 16 e 17 de outubro de 2002, procurou pôr fim a este flagelo após uma série de operações militares de tentativa de recuperação da Comuna 13 por parte do Estado. Esta contou com cerca de 1.500 uniformados, entre membros da Quarta Brigada do Exército Nacional, da Polícia Metropolitana e de Forças Especiais Antiterroristas, em ação conjunta com o Corpo Técnico de Investigação (CTI) e o hoje extinto Departamento Administrativo de Segurança (DAS).
Com o objetivo de exterminar as milícias do ELN, das FARC e dos CAP, e de varrê-las do mapa da Comuna 13, a força pública cercou o morro e, em uma ação coordenada com paramilitares das AUC, iniciou sua investida nas primeiras horas da madrugada. Foram quarentas horas de enfrentamentos levados a cabo em seis bairros (entre eles, Las Independencias), das quais resultou um saldo impreciso de mortes. Registros oficiais contam 16 – sendo quatro militares, seis civis e seis rebeldes –, enquanto o Centro Nacional de Memória Histórica, entidade pública instituída pela Lei de Vítimas e Restituição de Terras de 2011, estima ao menos 72 mortos e 300 desaparecidos.
Apesar das divergências, não restam dúvidas que foram muitos os mortos fora de combate e diversas as violações de direitos humanos cometidas pelas forças do governo: aliança espúria com paramilitares, torturas para obtenção de informação, detenções ilegais e desaparições forçosas foram práticas sistemáticas de que se valeram o Exército Nacional e a Polícia Metropolitana durante a Operação Orión.
Ainda hoje, vítimas do conflito seguem em busca de verdade, justiça e reparação pelos abusos e excessos cometidos pelo Estado. E, ainda hoje, Orión divide opiniões: a que preço foram eliminadas as milícias e recuperada a Comuna 13? Para muitos, os fins não justificavam os meios de que se valeu o Estado. Para outros, foi uma espécie de remédio amargo e de recurso último, o qual terminou por libertar a comunidade e a redimir.
Foi, em todo caso – e isto não se discute –, um divisor de águas na história da Comuna 13. Pois é evidente que ali há um antes e um depois da Operação Orión.
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Uma vez em Medellín, o visitante deve tomar a linha B do metrô até a Estação San Javier e, em seguida, o BUS 221i ou 225i, linhas alimentadoras. Assim chegará facilmente a estebairro de 14 mil habitantes, Las Independencias, um dos 19 que conformam a Comuna 13.
Enquanto Chota realiza ao pé do morro sua pintura ao vivo para uns gringos, lá no alto, onde o sexto e último lance do sistema de escadas rolantes se conecta com o Viaducto Media Ladera (um bulevar) e o Balcón de la l3 (um mirador), outros gringos gravam vídeos e aplaudem a performance de um grupo de breakdance conformado por jovens dançarinos locais. Mais adiante, de uma das muitas tendinhas de souvenir armadas ali por comerciantes, um vendedor de voz grave anuncia:
– Tenho ímãs, camisetas, bonés, pulseirinhas! Muito estilo, vejam!
É Víctor Mosquera, de 31, comerciante, rapper e grafiteiro, nascido e criado, como Chota, em Las Independencias. Há dois anos, ao dar-se conta do ingresso crescente de turistas ao bairro, estabeleceu seu negócio no viaduto, onde inicialmente vendia frutas tropicais. Desde então, permaneceu no mesmo ponto, mas substituiu a mercadoria:
– Todas as camisas são personalizadas. Sou eu quem as desenho – afirma.
Ele foi uma das vítimas diretas da Operação Orión, atingido em sua casa por um disparo de bala perdida, quando contava apenas 15 anos. Com o balaço incrustado no braço, relembra horas de martírio junto à sua família, sob a cama, à espera do cessar-fogo ou ao menos de alguma trégua, até que pudessem deixar a casa e se dirigir ao hospital mais próximo.
– Essa guerra nos impulsionou mais do que nunca a escrever, a pintar, a cantar nossa história – diz. – E esse balaço fez com que eu me aferrasse mais à vida.
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Com a captura, a expulsão e o extermínio das guerrilhas, e a posterior deserção dos paramilitares em fins de 2003 (negociada com o governo colombiano em acordos de anistia), o Estado ocupou a Comuna 13 e, pela primeira vez, voltou seus olhos a esta zona até então abandonada, segregada, marginalizada e estigmatizada, da qual sempre estivera ausente e com a qual acumulava enorme dívida histórica.
À prefeitura de Pérez Gutiérrez e à adoção de um plano emergencial de atenção à crise, seguiram-se, em 2004, a prefeitura de Sergio Fajardo (2004-2007) e a implementação dos Projetos Urbanos Integrais (PUI), cujos pilotos, no entanto, não tiveram lugar na Comuna 13, mas nas Comunas 1 e 2. Estas possuíam, afinal, os mais baixos Índice de Condições de Vida (ICV) e Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de todo o município de Medellín.
Ainda hoje, os PUI integram a política de Urbanismo Social adotada há décadas pela administração municipal em convênio com a Empresa de Desenvolvimento Urbano (EDU), entidade pública encarregada desde 1993 das obras de infraestrutura na cidade. São, em síntese, projetos de intervenção urbana, social e institucional, levados a cabo em zonas segregadas e marginalizadas do município.
Com previsão de conclusão para o ano de 2007, os PUI Comunas 1 e 2 incluíam, entre outras obras, o alargamento e a adequação de ruas, a construção de parques e colégios públicos, do Parque Biblioteca España e do teleférico Acevedo-Santo Domingo. E foi nesse meio tempo, em meados de 2006, que se encomendaram a César Augusto Hernández, então gerente-diretor dos PUI, as intervenções na Comuna 13.Naquele ano, o engenheiro civil realizou as primeiras visitas à comunidade, recorrendo a zona na companhia de moradores a fim de reconhecer o território, identificar suas carências e propor soluções.
A primeira queixa da comunidade dizia respeito ao manejo dos resíduos sólidos (ou seja, à problemática do lixo), para o qual, de acordo com a EDU, foram considerados sistemas de polias, tobogãs e ductos para poder descê-lo da parte alta para a parte baixa do morro. Assim, segundo nota da empresa, “[...] foi ao desenhar um sistema para os lixos que ocorreu a ideia de que também era possível desenhar algo que favorecesse a mobilidade das pessoas para que elas subissem e descessem sem tanto esforço e em boas condições. Nas ‘Oficinas de Imaginários’ foram propostas muitas alternativas: [entre elas] um teleférico, que só resolveria a problemática parcialmente, tendo em vista que o deslocamento se daria de ponto a ponto, não permitindo que as pessoas na metade do trajeto contassem com o benefício”.
Devido às severas restrições de mobilidade e acesso que o relevo montanhoso impunha à Comuna 13, muitos de seus habitantes viviam confinados em suas casas ou limitados ao perímetro de suas ruas, impossibilitados de enfrentar as empinadas ladeiras da zona (basta pensar nas gestantes, nos idosos, asmáticos, deficientes físicos e quaisquer outras pessoas de mobilidade comprometida). Com isso, viviam também segregados dos demais setores da cidade, apartados de seus múltiplos espaços e serviços públicos.
Foi diante deste cenário que a César Augusto ocorreu uma ideia aparentemente descabida: Por que não instalar escadas rolantes no morro?
O engenheiro civil tinha um referente: o das escadas rolantes do Parque Güell, em Barcelona, instaladas a céu aberto com o fim de facilitar o acesso de turistas a esta atração do mestre Antoni Gaudí, situada em uma acentuada colina da cidade catalã.
Ele propôs a ideia a Sergio Fajardo, mas o prefeito (a quem se acercava o final do mandato) lhe sugeriu apresentá-la a seu sucessor, o que efetivamente seria feito em abril de 2008. Alonso Salazar Jaramillo (2008-2011), que a princípio resistiu à ideia, ante os argumentos do engenheiro, acabou por ceder. Sobre o episódio, em El hombre que sembró una escalera eléctrica en la Comuna 13, entrevista publicada por Kienyke em abril de 2013, César Augusto recorda:
“Eu lhe mostrei um mapa urbano e os traçados das escadas para romper com os guetos. Disse-lhe que qualquer prefeito fazia colégios, hospitais ou parques, mas que ele poderia fazer algo inédito, que reconstruísse o tecido social e reduzisse a violência, entregando à comunidade uma obra que lhe faria sentir o que talvez nunca havia sentido: orgulho”.
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Em dezembro do ano passado, o arquiteto Juan Carlos Ayure, de 43, fundou a SAG (Street Arquitectural Graffitti), uma empresa familiar cuja sede coincide com o salão de beleza de sua esposa, um dos diversos estabelecimentos situados ao longo da Carrera 109, principal rua de acesso ao bairro Las Independencias. Desde então, ele passou a oferecer graffitours, porém com um toque inédito:
– Meti um pouquinho de arquitetura – explica ele, enquanto se dirige ao Coffee Shop Com. 13, uma cafeteria situada na Cabeza del Reversadero.
Ele conta que atuou por uma construtora privada contratada pela EDU para colaborar na execução das obras de remodelação do território e instalação das escadas rolantes:
– Nós chegamos aqui com um desenho final preliminar – recorda. – Acontece que, em um setor como este, uma favela, a cada semana surge um novo barraco, um novo beco. Com isso, parte do meu trabalho consistia em solucionar, já com as obras em andamento, todas estas questões que no papel são muito bonitas, mas que na vida real são outra coisa.
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A obra de instalação das escadas rolantes foi licitada e anunciada pela prefeitura de Medellín em meados de 2010 como uma das diversas intervenções urbanas previstas pelos PUI Comuna 13. Após uma série de estudos levados a cabo por topógrafos, engenheiros civis e arquitetos, que se haviam aventurado na zona em percursos acompanhados por líderes comunitários e assistentes sociais, ficara resolvido que a instalação do sistema se daria no bairro Las Independencias e que esta intervenção estaria articulada a outras obras de infraestrutura – a do Paseo Urbano Carrera 109, a do Reversadero, a do Balcón de la 13 e a do Viaducto Media Ladera –, de modo que, integradas, conformassem todo um circuito de acessos e circulação aos habitantes do bairro.
– Tratava-se, sobretudo, de um projeto de mobilidade – assegura o arquiteto Juan Carlos. – Ninguém havia pensado que isto viria a ser turístico.
Antes de dar início à compra e à expropriação das vivendas (34 no total) que teriam de ser demolidas para a instalação do sistema, a EDU promoveu uma série de campanhas pedagógicas junto à comunidade, reuniões massivas e assembleias comunitárias, com o fim de sensibilizá-la para os benefícios, cuidados e riscos da tecnologia que em breve seria introduzida em seu território: a das escadas rolantes.
Muitos dos habitantes do bairro nem sequer sabiam do que se tratava, tal o seu grau de segregação:
– A esta gente, gente sem recursos, que não conhece luxos, gente que é de um estrato social muito baixo, como lhe explicávamos que existem escadas rolantes elétricas e a convencíamos a instalá-las em sua comunidade? – questiona Juan Carlos. – Foi necessário levá-la a certos lugares, a shoppings e centros comerciais, e começar a ensiná-la o que é isso, que não precisa ter medo, que elas não vão comê-la, que não vão engoli-la, que não vão cair...
Estas campanhas pedagógicas promovidas pela EDU estavam pautadas no urbanismo social e pedagógico que esta defende, o qual prevê a participação cidadã em todas as etapas da obra que se levará a cabo em seu território: no antes (em sua formulação), no durante (em sua execução) e no depois (em sua manutenção). Com isso, o que se busca é gerar, na própria comunidade, sentidos de pertencimento e de corresponsabilidade, de maneira a assegurar-se da apropriação da obra pela mesma e da sustentabilidade do projeto.
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As obras tiveram início em fevereiro de 2011. Após o alargamento e a pavimentação de calçadas, a reposição de redes de aqueduto e esgoto, a realocação de redes elétricas externas, a construção de dois edifícios públicos, a criação de espaços públicos mobiliados, a criação de áreas verdes e o levantamento de muros de contenção, veio enfim a instalação das escadas rolantes elétricas. A área total de intervenção foi de 1.812 m2, e os investimentos ultrapassaram, à época, os US$4milhões, segundo dados da EDU.
O processo não esteve isento de contrariedades:
– Começamos a subir e a contratar gente, isto se tornou uma loucura – recorda Juan Carlos. – Os moleques da zona começaram a enfrentar-se, havia tiroteios durante o dia. Às vezes alguém me chamava e dizia “Chefe, tem piñata!”. Então foi necessário colocar uma sirene e dizer aos operários: “Pessoal, quando escutem a sirene, joguem no chão o que tiverem que jogar, não se troquem, corram para casa”.
Foram contratados cerca de 300 operários, em sua grande maioria conformada por mão de obra local, não-qualificada, sem antecedentes criminais.
Um dos desafios mais hercúleos consistia no transporte do sistema morro acima (seis lances duplos de escadas rolantes, cada qual pesando de oito a 14 toneladas):
– Cogitou-se subi-las e baixá-las por helicóptero, o que era muito arriscado, tendo em vista as vivendas que se encontravam abaixo – lembra o arquiteto.
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No dia 25 de dezembro de 2011, dez meses após o início das obras, as Escaleras Eléctricas foram inauguradas como um sistema de transporte público e gratuito no bairro Las Independencias. O clima era de festa, não apenas por ocasião do Natal, como também por inspiração da jornada “Medellín se pinta de vida”, um programa municipal de revitalização de fachadas de casas populares que nesse momento se levava a cabo na Comuna 13.
Esteve presente o prefeito Alonso Salazar Jaramillo (2008-2011), cujo mandado se acercava do fim, bem como a imprensa e toda a comunidade, a qual fazia filas para ingressar no sistema e experimentar as tão-esperadas escadas rolantes, ainda que estas, em um primeiro momento, não contassem com os tetos de acrílico e operassem por apenas três horas diárias (tempo que se estenderia de maneira gradual, à medida que as obras fossem de todo concluídas e que o sistema comprovasse sua funcionalidade).
Com isso, em 6 de maio de 2012, já com os tetos, jardins e mobiliários urbanos, foram reinauguradas pelo então recém-empossado Aníbal Gaviria Correa (2012-2015), no que seria uma demonstração de que a cada prefeito cabe uma “fatia do bolo”, mas também uma prova do comprometimento da administração municipal para com a continuidade da política pública de Urbanismo Social.
O sistema – composto por seis lances duplos (sobe-e-desce) de escadas rolantes elétricas, com um total de 150m de extensão linear longitudinal, inclinações de 30º e 35º e velocidade de 30m/min (ou 0,5m/s) – havia substituído os 350 degraus de concreto que antes tinham de arrostar diariamente os habitantes da parte alta do bairro (uma subida equivalente a 20 andares de um edifício). Isso lhes reduzira o tempo de viagem de cerca de 30 minutos para tão somente cinco minutos, poupando-lhes também esforços físicos e solas de sapato.
Dali em diante, os habitantes de Las Independencias já não chegariam suados e ofegantes às suas casas após um dia de trabalho: haviam encontrado repouso no movimento dos degraus que se moviam e se reciclavam sob seus pés.
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Atualmente, o sistema Escaleras Eléctricas funciona em fluxo ininterrupto por 16 horas diárias, administrado e operado pela empresa pública Terminales de Transporte de Medellín. Está situado, além disso, sob uma área de cobertura de Medellín Digital, a rede pública de WiFi da administração Municipal, a qual assegura aos habitantes do bairro (para além da conexão física proporcionada pelas escadas rolantes) a conexão virtual.
Nesta manhã de fevereiro, entre o segundo e o terceiro lances do sistema, Juan Karlos Zapata Holguín, de 31, um homem de macacão amarelo e galochas pretas, empunha uma hidrolavadora de alta pressão.
– Hoje estamos lavando o sistema de escadas rolantes e as zonas comuns – diz.
Ele interrompe por vezes o disparo do jato de água para dar passo aos transeuntes, moradores e visitantes, que sobem e descem, descem e sobem, estes sim, em um fluxo incessante assegurado pelas escadas rolantes.
– Das escadas rolantes se beneficia quem quiser – afirma. – Tanto em termos de mobilidade, como economicamente. Veja que as casas se tornaram negócios; e que, neste momento, qualquer pessoa do bairro pode se tornar um guia. Para isso, basta saber como receber as pessoas e conhecer a história do bairro.
Neste momento, ele se acerca da plataforma de desembarque do segundo lance do sistema e acode a uma senhora que ameaçara tropeçar:
– Estas escadas parecem muito inofensivas, mas são perigosas – comenta.
A julgar pelos cartazes de instruções afixados nas plataformas de embarque e desembarque das escadas rolantes, ele tem razão:
“TENHA CUIDADO!
Siga as instruções ao usar estas escadas:
proibido apoiar-se ou sentar-se no corrimão ou nos degraus; proibido que as crianças brinquem nas instalações; afaste-se dos extremos; amarre os cadarços; desobstrua as escadas após usá-las; não leve objetos sobre o corrimão [...].
Evite acidentes”
[cartaz Schindler Andino].
– As normas existem por dois motivos: evitar acidentes e evitar o desgaste das instalações – explica Juan. E agrega: – Aqui nós temos um ditado: “Se as escadas sobem, você não precisa caminhar”.
Seu colega, David Andrés Zapata Alzate, de 26, explica:
– Neste lugar exigimos, como norma, não caminhar sobre as escadas em movimento, o que mitiga os riscos. Não é uma norma que se encontre legível no cartaz de instruções, mas é uma cultura que criamos verbalmente para que as pessoas se conscientizem. Não tem lógica criar escadas rolantes que te vão subir ou te vão descer e você ter de caminhar sobre elas. Temos que mudar este chip, esta mentalidade de andar sempre sobre o tempo.
David Andrés cresceu no bairro sob o domínio das guerrilhas e dos paramilitares, foi testemunha da Operação Orión quando criança e participou como obreiro na instalação das escadas rolantes ao completar a maioridade, empregando-se posteriormente como auxiliar operativo e gestor pedagógico do sistema. Neste princípio de tarde, entre o terceiro e o quarto lances do sistema, aguarda o final de seu turno, enquanto observa o tráfego de passageiros:
– Nossa função principal é velar pela segurança do usuário – diz David Andrés. – Observar se as pessoas que vão ingressar nas escadas se encontram aptas, se contam com os cinco sentidos, se não estão zonzas. Se alguma pessoa tem mobilidade reduzida, se utiliza cadeira de rodas, nossa função é ajudá-la.
São, ao total, 15 auxiliares operativos (popularmente conhecidos como “gestores pedagógicos”) a serviço de Terminales, os quais se revezam em turnos e em patamares, de modo que cada gestor resguarde um dos seis lances duplos de escadas rolantes. O ofício consiste na operação do sistema (ligar-desligar), na tomada de notas da quantidade e da nacionalidade de seus visitantes e, acima de tudo, na pedagogia de seus usuários para o uso correto das escadas rolantes, o que, segundo David Andrés, pressupõe vigilância constante por parte dos gestores.
Perguntado pelas instruções que mais infringem os habitantes do bairro, ele responde:
– É necessário estar atento aos sapatos com cadarços soltos, que se podem enredar. E também aos calçados macios (pantufas, sandálias Crocs), porque as escadas elétricas absorvem o material e podem machucar os pés. Sem falar nos animais de estimação, que devem ser levadas no colo.
Os acidentes, segundo ele, são muito raros, mas ocorrem:
– Sobretudo se dão quando as pessoas caminham em sentido contrário. Tropeçam e se chocam com a ponta dos degraus. Vemos este comportamento principalmente em pessoas estrangeiras à procura de um pouco de diversão.
Como atuam nestes casos?
– Prestamos primeiros-socorros. Independentemente de o usuário ignorar as regras, estamos capacitados para prestar os primeiros auxílios no caso de qualquer acidente: fraturas, feridas abertas, queimaduras.
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Desde que Medellín reduziu drasticamente seus índices de criminalidade (redução de 80% na taxa de homicídios entre 1991 e 2010) e foi eleita, em 2013, a “cidade mais inovadora do mundo” em concurso anual promovido por Citigroup, Wall Street Journal e Urban Land Institute, ondas crescentes de turistas a visitam. Estes provêm de todas as partes do mundo, interessados não mais (ou não apenas) no narcoturismo e no turismo sexual que ainda perduram na cidade, ou em seus já tradicionais Pueblito Paisa e Plaza Botero, mas em suas obras públicas de urbanismo social que a revitalizaram nos últimos anos: suas praças, seus parques-biblioteca, seu metrô de superfície, seus teleféricos e escadas rolantes sobre favelas.
Segundo dados do Sistema de Indicadores Turísticos Medellín y Antioquia (Situr), as Escaleras Eléctricas da Comuna 13 receberam um total aproximado de 170 mil visitantes no ano de 2018, sendo 70% deles estrangeiros. Para efeitos de comparação, apenas no mês de janeiro do presente ano de 2019, foram cerca de 40 mil visitantes (quase o triplo da própria população do bairro Las Independencias), consolidando-se, com tendência de alta, como um dos maiores atrativos turísticos de Medellín.
A comunidade, de modo geral, não parece se sentir invadida:
– Para muitas comunidades, isto seria estressante: “Por que não posso caminhar por meu bairro?!”, pensariam. Mas aqui não – afirma o gestor pedagógico David Andrés.
A falta de privacidade, contudo, pode injuriar algumas pessoas:
– Os turistas sobem para tomar fotos, e o que os moradores põem lá? Sua roupa! – observa o arquiteto Juan Carlos. – Ou então, pela manhã, saem de pijama e chinelos a comprar pão para o café e lhes dá vergonha, porque aí está o turista, tomando fotos... É uma contradição: ou seja, se queixam, mas gostam, porque seu negócio está vendendo – resume.
Outra contradição: ao passo que alguns habitantes celebram a valorização de seus imóveis, outros já reclamam da alta nos preços e no custo de vida.
Ao que tudo indica, Las Independencias é hoje uma comunidade na qual bairrismo e cosmopolitismo se atravessam, se chocam, se entrecruzam e se fundem em processos de hibridação e transculturação. Que se observem, por exemplo, os estrangeirismos que dão nome a práticas, grupos artísticos e estabelecimentos locais (Graffitour, Black&White, Coffee Shop Com. 13). Neste bairro, muros cravejados por disparos transformam-se, pelas mãos de artistas que neles enxergam telas em branco, em páginas de sua própria história recente de superação, impregnados de beleza e memória. As vivendas, por sua vez, convertem-se em empreendimentos diversos (barbearias, mercearias, tendas de roupas e souvenires, bares, galerias), impulsionados por ondas de turistas estrangeiros que, na companhia de guias locais bilíngues, transitam pela zona através de um sistema de escadas rolantes elétricas instalado sobre o morro e ali admiram as múltiplas facetas da cultura hip-hop (o grafite, o rap, o breakdance).
No início, foi a guerra. Depois vieram a arte, a tecnologia e o turismo.
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No prefácio de Un mundo lleno de futuro: diez crónicas de América Latina (Planeta, 2017), antologia organizada por Leila Guerriero, a jornalista e cronista argentina escreve:
“Naqueles e nestes tempos, os grandes inventos (a penicilina) convivem com os pequenos inventos (a mala com rodinhas) e com os intermediários (o GPS), mas é muito difícil avaliar o quão revolucionário é um invento quando somos seus contemporâneos, e quase impossível predizer as ondas concêntricas que produzirá – ou não – expandindo-se até os confins da história. Como saber quais de todas as coisas que se inventam hoje são as que nos mudarão a vida amanhã?”.
Ora, se as escadas rolantes elétricas da Comuna 13 de Medellín surgiram como um sistema de mobilidade e um projeto pedagógico, está claro que este já se converteu também – dado que único no mundo – em um atrativo turístico, um gerador de empregos e, consequentemente, em um motor de economia e um freio à criminalidade (basta pensar nos obreiros, gestores, comerciantes locais, artistas e guias turísticos que antes ali não existiam ou que ainda não haviam sido despertados para seus talentos).
Estas escadas rolantes instaladas a céu aberto no seio de uma favela, com o caráter de transporte público, gratuito e pedagógico, são um dos mais belos exemplos de inovação urbana a partir da necessidade social. Encurtaram distâncias, romperam fronteiras e seguem expandindo horizontes. Não apenas conectaram um bairro popular com os demais setores da cidade, como também com o mundo.
Reportagem originalmente publicada na edição 207 da revista El Malpensante (Colômbia), com tradução para o espanhol de Andrés Hoyos.
Sobre o autor
Natural de Belo Horizonte, Adriano Cirino, de 24, é jornalista graduado pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e autor do livro Nos bastidores de ‘Escobar’ & outras crônicas bogotanas (Crivo Editorial, 2018). Dedica-se à escrita de crônicas, reportagens, perfis e poesias, tendo sido publicado pelas revistas Piseagrama e El Malpensante (Colômbia), pelo suplemento Pensar do jornal Estado de Minas e pelo selo Off Flip. Participa atualmente do 30º Curso Estado de Jornalismo.